Alguns Esboços... [Assaigos sociologics de Julio Souto]

dos Anjos – Linha Cruzada (resenha em pdf)

No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira

José Carlos Gomes dos Anjos

Pedras com perspectivas. Animais e vegetais sacralizados. Santidades que se alternam. Raças que percorrem outras raças. Esse é o mundo dos terreiros.

(dos Anjos, 2006: 119)

A ideia do “rizoma” apressentada em Mille Plateaux (Deleuze & Guattari, 1980) serve como punto de partida para este interessante abordágem à cosmologia religoisa da linha cruzada, na súa interação com o sistema político. O trabalho etnográfico realiza-se na Vila Mirim (Porto Alegre), no momento em que a expansão das grandes avenidas amenaça com a remoção da Vila. A proximidade do autor a entidades do movimento negro e aos terreiros, que não oculta o engajamento militante, permete uma profundidade émica apreciável na narração das situações e no detalhismo descritivo dos aspectos cerimoniáis. O resultado do amplio trabalho de campo é um livro que, ao igual que seu objeto de estudo, poderia ser descrito como um rizoma, no que cada capítulo poderia ser desenvolvido infinitamente, abrindo debates que abrangeriam desde aspectos da representação icónica nas imagems religiosas, até a disposição das fronteiras na morfologia urbana. Porém, a disposição dos capítulos segue uma estrutura lógica que culmina no que tal vez seja um dos aspetos centrais da contemporaneidade: “existe a possibilidade de um corpo social constituir-se sem a convicção de uma identidade essencial e ainda assim ser capaz de reivindicar autonomia e direitos?” (p. 108). Num momento em que as categorias hegemónicas da modernidade parecem entrar em crise, e os principáis focos de tensão se ubicam nos processos de definição identitaria respecto aos (e/ou contra aos) fluxos globais de informação e capitais, este livro realiza aportes interessantísimos sobre o trabalho de autores tão diversos como Manuel Castells, Zygmunt Bauman, Ademar Bogo, ou Fernando J. García Selgas.

Depóis dum remarcable capítulo de agradecimentos (com essa lúcida referência à polifonia como procedimento), na introducção coloca-se um útil mapeamento dos capítulos, que servirá como primeira referência para se orientar nos seguintes capítulos.

O Primeiro, A encruzilhada: do urbanismo branco e da religiosidade negra, faz uma apresentação da religiosidade da linha cruzada (de Batuque, Umbanda e Gira) enfatizando a ideia de encruzilhada como o grado zero do processo de subjetivação, uma constante abertura de caminhos e flujos de energia. O ritual da possessão, no que o indivíduo cede seu corpo a uma entidade diferente do “eu”, poderia ser plantejado como o paradigma desse “outro dentro do mesmo”. O exu, ogum das sete encruzilhadas, (trickster afro-brasileiro, simbolo simultaneo do Bem e do Mal) apareceria como senhor da encruzilhadana, na súa triple apresentação como bará (no batuque), ogum (ou orixa caboclo, na umbanda) e exu (na gira). Nesta multiplicidade, tão desconcertante para o olhar estrangeiro, encontrariamos uma recusa da imagem nomotética da “vida como caminho”: a religiosidade da encruzilhada “faz da vida um territorio”. A raça e plantejada como um “percurso nômade” em movimento sobre os corpos, no que a convivência do diferente é celebrada como patrimonio simbólico. Esta apresentação rizomática da raça na religiosidade se colocaria como oposição ao mito freiriano da miscigenação e da democracia racial, no que plantejava-se a disolução da diferência numa síntesi mulata, como essência sincrética da nação brasileira.

O segundo capítulo, O território da linha cruzada, apressenta a estructura organizativa da Vila Mirim, centrándose na categoria émica da encruzilhada. Esta se percebe tanto espacialmente (cruce de dois ruas, heterogeneidade do territorio) como na imagem lineal do tempo (remoçao e progresso contra permanência e conservação). Aquí a etnografia se enriqece com material fotográfico, apresentado com a ideia da imagem-tempo e a noção de desterritorialização (Deleuze, 1990), que explicariam o processo pelo qual os territorios que representam o “futuro” (as novas avenidas asfaltadas) “atropelan” os territorios do presente (as rúas de terra, as cassas de madeira, o esgoto a céu aberto). A ideia da máquina de guerra nômade constituiria então a estrutura organizativa duma comunidade em permanente processo de desterritorialização. Vinculado ao capítulo anterior, o ethos afro-brasileiro permeteria construir grupos ou redes corporadas, mas em intrínseca tendência à disolução e à desterritorialização; baseando-se em identidades flexíveis, dissoluveis, sempre em reconstitução. Afinal, nem o eu, nem a família carnal, nem a vizinhanza, nem a familia-de-santo, formam corpos sólidos nem identidades territorializadas. Neste punto, dos Anjos coloca o interesante conceito de identidade sociodegradável, como uma noção que organizaria grupos políticos de resistência intensa e efímera, livres da asfixia burocrática e da fixação a uma identidade de grupo.

O terceiro capítulo, Mirim em desterritorialização, aborda etnográficamente o encontro entre a cosmovisão religiosa e o territorio da Vila Mirim. O que encontramos é uma ambigua territorialização deslizando sobre o espaço físico, onde a comunidade se organiza sobre identidades multilocais que generam tensão ao friccionar com os processos territorializantes impostos pelo estado. Si a disposição da encruzilhada parece tender a uma posição indefinida entre o nomadismo e a sedentariedade, o estado impele aos moradores a definir fronteiras e límites claros, que generem grupos corporados. Aspectos como o material de construção das vivendas (ao contrario que a pedra, a madeira pode ser desmontada e reutilizada, convertindo as vivendas em “dispositivos deslocáveis”) ou a relação de propriedade do solo (proprietarios ou alugados) são apressentados como aspectos geradores dos “quasi-grupos”, identidades não corporadas. Será nos momentos de tensão política que estes quasi-grupos tomem posições máis concretas. A mostra máis evidente desta dinámica parece ser a da raça, no que o patrão émico de classiicação apressenta uma diversidade muito máis rica que a gralha oficial do IBGE. Servindo-se das categorias de hegemonia (Gramsci) e efeito de verdade (Foucault), dos Anjos coloca uma nova definição do racismo que irá máis além da ideia clásica do “racismo sutil”. Segundo o autor, o racismo se explicitaria na construção jerárquica das representações, baseada na distância respecto ao padrão de humanidade definido pela cultura occidental (o homem adulto branco).

No quarto capítulo, Representação política na encruzilhada, narra-se um acontecimento concreto, uma visita do prefeito de Proto Alegre à Vila Mirim. Esta visita se planteja como uma situação ritualizada, na que as representações políticas do “poder em procissão” entram em jogo. Dos Anjos retoma os conceitos desenvolvidos anteriormente do racismo e do efeito de verdade, para comprender como as promesas do poder (“ninguem vai ser remoçado à força”) cobram credibilidade, a pessar da erosão da legitimidade que poderia suponher a sua continua repetição e decepção. Vemos como a administração, apesar da súa insistência na racionalização e burocratização, sirve-se do “espectáculo como lugar de exercicio de um poder de Estado, tanto máis obcecado pela comunicação quanto máis impotente é” (p. 72). Assim, a presença corporea do prefeito atualiza um poder que trascende em muito o mero cenario físico. O prefeito encarnaria “o rostro branco do poder”, a “cara do santo”, apoiandose na tradicional iconografia racista (apreciável, por ejemplo, na jerarquia observada emtre as estatuas de santos, caboclos e orixás). Porém, a noção de representação na religiosidade afro-brasileira presenta uma estrutura complexa de relações de poder, que pode ser comprendida no uso ritual do acutá, bem diferente da hostia cristiã. O acutá percebe poder imediato, e ao mesmo tempo representa um poder “como presença constitutiva de um nós sobre o qual se exerce”. Entra-se numa relação paradójica de distância/proximidade, onde “o poder é tanto máis absoluto quanto anulado na familiaridade”. Eliminando a distância entre representado e representação, o actuá se concebe como uma virtualidade que preexiste como ideia, mas que é atualizada no momento da evocação como uma singularidade concreta. Com esta minuciosidade na noção de representação afro-brasileira, o autor quere prevenir-nos contra uma compreensão simplificada que associaria o uso de iconos religiosos (santos) com a resposta clientelista aos conflitos políticos. Em lugar de isso, ao que estamos asistindo é a uma interceptação do sistema de representações religiosas pelo sistema de representações políticas, interceptação tão activa como à inversa. A premissa principal, que não deixa de ser lembrada, é que o objetivo é “uma concepção da estrutura social como punto de partida, não como punto de chegada”, sendo todas as relações dinámicas e inestáveis. O culto ao exu-belzebú, como uma cosmopolítica do devir-animal e o devir-mulher, representaria uma subversão paradigmática das dinámicas do dessejo.

Na capítulo quinto, A Disputa política na Mirim, inícia-se uma recapitulação de todos os temas que se desenvolviron durante o livro, focando os diferentes aspectos das disputas abordadas. Rastreando a genealogia da Comisão de Moradores como um grupo político corporado, faz-se um resumo das dinámicas relacionáis observadas até o momento. Voltamos de novo à ideia da verdade política, como o proceso pelo qual o ordem social é reconhecido ocultando o seu carácter arbitrario. Nas posições contrarias a issa ordem (permanência na Vila), encontrariamos uma subversão herética frente ao ordem cognitivo institucionalizado, que porém são impossíveis sem os percursos necesários. Aquí enfrenta-se a noção clásica de Empossamento à de Possessão, vinculada as prácticas religiosas afro-brasileiras, onde o que implosiona é o próprio conceito de “eu”, uma deconstrução do “individuo”, como noção fundante da epistemologia moderna. Assim, seguindo a lógica da encruzilhada, a raça apareceria pressentada como uma construção nômada movida pelo desejo através dos corpos, uma construção tão artificial como quaisquer outra. Observamos como a subversão cognitiva abrange simultâniamente todos os níveis do ordem social.

Num último giro reflexivo, o autor enfoca as tendências de “reafricanização” observadas na antropologia dos cultos afro-brasileiros nas últimas décadas, vinculadas ao movimento negro. Estas posições são frequentemente denunciadas como criadoras duma “tradição inventada” numa “ecliogênese dos cultos de origem africana”, que contravendria a ideia de miscigenação e disolução das diferencias essencialistas. O argumento do autor, é que a religiosidade afro-brasileira constroi uma filosofia política da diferência, próxima ao multiculturalismo e o multinaturalismo, e ista tendência antropológica pretende servir como “espaço de ressonância” para essa filosofia política invisibilizada. A conclusão, que faz que o trabalho antropológico trascenda a esterilidade académica para devir proposição política, é que “existe a possibilidade de uma filosofia política alternativa para a política atual de pacto entre raças”:

São duas as dimensões políticas resgatáveis a partir da interseção do multinaturalismo e do multiculturalismo: 1) é possível políticas compensatórias de corte racial sem essencialismos raciais; 2) o patrimônio étnico é o lugar de viagens múltiplas de seres nômades. (p. 121)

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Anjos, Jose Carlos Gomes dos, (2006) No territorio da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/Fundação Cultural Palmares.

Deleuze, G.; Guatari, F. (1980) Mille Plateaux: capitalisme et schizoprénie. Paris: Les Editions de Minuit.

Deleuze, G. (1990) Cinema, a imagem tempo. São Paulo: Brasiliense.

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1 Comment so far

  1.    Falando no deserto » Hiperrealidad y soja na Fazenda de Rose on març 14, 2011 3:15 am

    […] se veía entre los moradores de la Vila Mirim, en la periferia de Porto Alegre, en el magnífico trabajo etnográfico de Jose Carlos Gomes dos Anjos. La banda sonora de O Sonho de Rose, basada en la canción Assentamento, de Chico Buarque (que […]

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